Como Rubens Paiva foi citado na promulgação da Constituição e o que isso nos ensina sobre discursos

Por João Frey

O sequestro e assassinato do deputado Rubens Paiva pela ditadura militar – história que hoje repercute em todo o mundo com o filme “Ainda estou aqui” – foi mencionado em um dos mais célebres discursos da história do Brasil: o de promulgação da Constituição de 1988, proferido por Ulysses Guimarães. O discurso é uma obra-prima em sua forma e conteúdo. 

 

Um pouco do contexto político em que o discurso foi feito nos ajuda a compreendê-lo melhor. Naquele dia 5  de outubro de 1988, a Assembleia Nacional Constituinte entregava ao Brasil uma Constituição feita sob o regime democrático depois de cerca de  20 anos de ditadura militar. Neste período, nas palavras do próprio Ulysses, a Constituição foi rasgada, as portas do Parlamento foram trancadas, a liberdade foi garroteada e os patriotas foram mandados para a cadeia, o exílio e o cemitério. A promulgação era, portanto, um grito de  liberdade. 

 

Ulysses soube expressar esse grito na forma e no conteúdo de seu discurso usando um importante artifício retórico: o ritmo. Costurou lindamente frases mais longas com outras mais curtas e poderosas.

 

Esse artifício, por exemplo, ajudou a insculpir na história política mundial uma frase dita por John Kennedy em seu discurso de posse como presidente dos Estados Unidos, em 1961.

Na longa história do mundo, poucas gerações receberam a missão de defender a liberdade em sua hora de maior perigo. Eu não recuo diante dessa responsabilidade — eu a recebo com entusiasmo. Não acredito que qualquer um de nós trocaria de lugar com outro povo ou outra geração. A energia, a fé e a devoção que trazemos para este esforço iluminarão nosso país e todos que o servem — e o brilho desse fogo pode, de fato, iluminar o mundo.

E assim, meus compatriotas: não perguntem o que seu país pode fazer por vocês — perguntem o que vocês podem fazer pelo seu país.

Depois de um parágrafo mais longo e de construção mais complexa, Kennedy condensa seu pensamento em uma frase poderosa e direta. 

 

Este exercício do escritor Gary Provost, autor do livro “Cem Maneiras de Melhorar a Escrita”, ilustra com clareza a importância do ritmo na escrita. 

Esta frase tem cinco palavras. Aqui estão mais cinco palavras. Frases deste tamanho são boas. Mas várias juntas são monótonas. Ouça o que está acontecendo. A escrita está ficando entediante. O som dela se arrasta. É como um disco riscado. O ouvido exige alguma variedade.

Agora ouça. Vario o comprimento das frases e crio música. Música. A escrita canta. Ela tem um ritmo agradável, um balanço, uma harmonia. Uso frases curtas. E também uso frases de comprimento médio. E, às vezes, quando tenho certeza de que o leitor está descansado, envolvo-o com uma frase de considerável extensão, uma frase que arde com energia e cresce com todo o ímpeto de um crescendo, o rufar dos tambores, o estrondo dos címbalos – sons que dizem: preste atenção nisto, é importante.

De volta a  Ulysses Guimarães

 

Naquele cinco de outubro, Ulysses discursou a seu modo: estadista, institucional e democrata. Não foi um discurso proferido aos berros, mas teve importantes momentos de exaltação na fala, que foram combinados com frases curtas e poderosas, justamente nos momentos em que criticava a ditadura militar. 

 

O Estado, encarnado na metrópole, resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes, [palmas] sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira, que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: “Desobedecer a El-Rei, para servir a El-Rei”.[Muito bem!]

 

O Estado capitulou na entrega do Acre, a sociedade retomou-o com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e dos seus seringueiros. [Palmas.]

 

O Estado autoritário prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou. [Palmas.]

 

A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. [Muito bem! Palmas prolongadas.]

 

Depois de uma construção longa e professoral, Ulysses começa a esquentar os motores para o clímax que viria na citação a Rubens Paiva. Veja que a anotação publicada pelo  Departamento de Taquigrafia da Câmara dos Deputados registra o êxtase da plateia. Ulysses construiu o caminho para essa exaltação. 

 

O mesmo método foi utilizado em outro momento do discurso: 

 

Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. [muito bem! Palmas prolongadas.] Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina. [Palmas.]

 

Finalizo, portanto, com uma lição de Gary Provost: “escreva combinando frases curtas, médias e longas. Crie um som que agrade ao ouvido do leitor. Não escreva apenas palavras. Escreva música”.




 

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